Distribution

Marcando a chamada segunda fase da produção anfórica lusitana, estreitamente associada à “indústria” de preparados piscícolas que sofreu, na viragem do séc. II para o III, uma importante transformação (FABIÃO & CARVALHO, 1990), a ânfora Almagro 51c constituiu o recipiente lusitano com maior produção e difusão no Baixo-império. De um modo geral, podemos considerar dois eixos de distribuição desta ânfora: o mercado interno, com uma forte presença em contextos urbanos e rurais da Lusitânia; a exportação a longa distância, durante os séculos III, e sobretudo nos séculos IV e V.

Beneficiando da quebra na produção e exportação dos preparados piscícolas béticos, a afirmação dos produtos à base de peixe e sal lusitanos conhece, a partir do séc. III, um desenvolvimento notável, no vale do Tejo e do Sado e também no território algarvio.

Deve referir-se que o quadro da distribuição das produções lusitanas encontra-se necessariamente incompleto e conhecerá certamente novos desenvolvimentos muito em breve. Mais do que colocar novos pontos no mapa interessará perceber qual terá sido o peso relativo das importações lusitanas nos diferentes centros de consumo, face às das restantes províncias.

Para a distribuição das ânforas Almagro 51c, dispomos de publicações de diferentes sítios e também do tratamento estatístico de conjuntos, elaborado a propósito dos sítios algarvios, com actualizações (VIEGAS, 2011, Anexo 2, 595-601). Trata-se de dados parcelares, muito desiguais em número e qualidade, mas que fornecem algumas linhas de abordagem a esta complexa realidade. Contudo, a frequente ausência de referência aos fabricos impossibilita reconhecer se estamos perante Almagro 51c de produção do Sado/Tejo ou dos centros produtores algarvios. Acresce ainda o facto de frequentemente as ânforas deste tipo serem identificadas genericamente como produções hispânicas, sem que os autores procedam a uma diferenciação dos exemplares provenientes da Lusitânia ou da Bética.

A comercialização desta forma para o Nordeste Atlântico encontra-se comprovada pelo conjunto de exemplares identificados em Bracara Augusta (MORAIS, 2006, 295-312).

A informação relativa à circulação de preparados piscícolas lusitanos durante o Baixo-império em meio urbano é escassa. O reconhecimento de uma quebra geral nas importações nos principais núcleos urbanos pode ajudar a explicar este facto. Por exemplo, em Conímbriga, numa amostra de 204 ânforas, apenas 59 pertencem ao período baixo-imperial. Destas, mais de 80% são de origem lusitana, ainda que nesta cidade as ânforas Almagro 51c e Almagro 50 ocorram em percentagens idênticas (32,2%) (ALARCÃO, 1976, 79-91; BURACA, 2005), o que é pouco frequente, como teremos oportunidade de verificar.

Em Scallabis (actual Santarém), é igualmente escassa a presença de ânforas da forma Almagro 51c, representadas por apenas seis fragmentos, todos pertencentes a fabricos relacionados com as produções dos vales do Tejo e do Sado (ARRUDA, VIEGAS e BARGÃO, 2006, 264-247, Fig. 6, n.ºs 51-55).

As produções do vale do Tejo, nomeadamente do Porto dos Cacos e da Quinta do Rouxinol, encontram-se identificadas entre os materiais sujeitos a recente caracterização química provenientes do Núcleo Arqueológico da R. dos Correiros (NARC), em Lisboa, demonstrando que os preparados piscícolas ali produzidos terão sido envasados nos contentores manufacturados na margem esquerda do Tejo (DIAS et alii, 2012, 57-70).

A forte presença desta forma nos conjuntos recentemente dados a conhecer do sítio do antigo  Cuartel de Hernán Cortés em Mérida, demonstra que o abastecimento por via terrestre à capital da província constituiu uma realidade que se acentuou no período baixo-imperial (ALMEIDA & SANCHEZ HIDALGO, 2013, 48-59). De facto, em 243 ânforas, os exemplares originários da Lusitânia (88), cabem, na sua esmagadora maioria, no tipo Almagro 51c e 51c “tardio”, atingindo uma percentagem de 68.1% relativamente ao total deste período (ALMEIDA & SANCHEZ HIDALGO, 2013, 54, Fig. 4).

Nos centros de consumo da Lusitânia meridional, nas cidades de Faro (Ossonoba) e Torre de Ares (Balsa), a Almagro 51c é a principal forma lusitana presente, assumindo percentagens de 31% e 22,7%, respectivamente (VIEGAS, 2011). De assinalar que só a partir do séc. III se verifica um decréscimo do domínio das importações béticas para esta região. Assim, durante a Antiguidade tardia, além das importações béticas, que continuam a ter um importante papel nos conjuntos estudados, as importações norte-africanas adquirem destaque, ganhando igualmente um peso expressivo as ânforas originárias do interior da Lusitânia. Quanto aos fabricos destes exemplares, foi difícil atribuí-los a áreas produtoras concretas, tendo-se apontado semelhanças formais com as produções taganas e algarvias (VIEGAS, 2011, 236-238, 376-380).

Nas recolhas das dragagens do Rio Arade (Portimão), as ânforas Almagro 51c correspondem a 42,5% dos envases baixo-imperiais, que são igualmente compostos por ânforas do tipo Almagro 50/Keay 16 béticas (27.1%), sendo as restantes de origem norte-africana (SILVA, COELHO-SOARES & SOARES, 1987, 203-220; DIOGO, CARDOSO & REINER, 2000, 81-118).

Na vizinha província da Bética, os dados de Sevilha mostram que, durante a Antiguidade tardia, as ânforas de preparados piscícolas mais frequentes são do tipo Keay 23 (Almagro 51c) de fabrico bético, mas sobretudo lusitano (GARCÍA VARGAS, 2007, 340, Fig. 6.6). Contudo, em termos percentuais, contabilizando a capacidade das ânforas (em litros de mercadorias), as mercadorias lusitanas correspondem a apenas 2,23% do total registado em Sevilha no séc. IV (GARCÍA VARGAS, 2007, 340).

No centro de produção de preparados de peixe de Tróia, a Almagro 51c representa 37% das ânforas lusitanas recolhidas e inventariadas, mas essa proporção aumenta para 69% se considerarmos apenas as peças de meados do século III ao século V (ALMEIDA et alii, no prelo). No conjunto das ânforas recolhidas mas escavações de 2007 a 2010, os fundos cilíndricos são muito mais comuns do que os fundos cónicos, e tudo indica que exemplares da variante fusiforme (ou C) tivessem também fundos cilíndricos. De uma lixeira doméstica escavada em 2009 na oficina de salga 1 de Tróia, e datada do final do primeiro terço do século V, foi estudado um conjunto de 108 ânforas (número mínimo de indivíduos) no qual a Almagro 51c representa 60% (PINTO, MAGALHÃES & BRUM, 2012). É a variante C que domina mas os fundos cónicos são numericamente inferiores aos pequenos fundos cilíndricos ou troncocónicos invertidos.

Nas villae do sul de Portugal (S. Cucufate, Monte da Cegonha e Tourega), a presença de preparados piscícolas é esmagadora no período Baixo-imperial, assumindo as produções do Tejo/Sado percentagens de 77,4% no Monte da Cegonha e de 89,9% na villa da Tourega (PINTO & LOPES, 2006, 219-221). Mais concretamente, no Monte da Cegonha, a ânfora Almagro 51c corresponde a 65.6% dos tipos baixo-imperiais (PINTO & LOPES, 2006, 204, Fig. 4). Em S. Cucufate, durante o Baixo-império não se registou qualquer importação da Bética e o abastecimento de preparados piscícolas foi assegurado sobretudo pela ânfora Almagro 51c, que corresponde a 80,2 % dos contentores deste sítio (ALARCÃO, ÉTIENNE & MAYET, 1990, 251 -255; MAYET & SCHMITT, 1997, 72; PINTO & LOPES, 2006, 219-221).

O mapa da difusão do tipo Almagro 51c lusitano para os grandes centros de consumo da bacia do Mediterrâneo está em grande medida por realizar, mas encontra-se na Península Itálica, na Gália, na Alemanha, no Norte de África e, igualmente, no Mediterrâneo Oriental (SLANE & SANDERS, 2005). As informações dos naufrágios são fundamentais para o conhecimento da geografia da comercialização dos preparados piscícolas lusitanos. De um modo geral, durante o Baixo-império, assinala-se uma concentração de achados subaquáticos na costa meridional da Gália, registando-se igualmente a presença de naufrágios na costa da Catalunha, nas ilhas Baleares, e em Itália na Sardenha e na Sicília (FABIÃO, 1997; ÉTIENNE & MAYET, 2002, 202-210, Fig. 62).

Na distribuição dos produtos alimentares transportados em recipientes anfóricos do tipo Almagro 51c assinala-se uma comercialização que teve por base as vias fluviais (pelo curso do rio Sado, de que é testemunho, por exemplo, o abastecimento à villa de S. Cucufate) e marítimas, com destino à costa Atlântica e ao Mediterrâneo. Neste contexto, terão desempenhado um papel importante no estuário do Tejo a cidade de Lisboa, e no Sado o próprio centro urbano e industrial de Tróia. Daí, a navegação prosseguia, por cabotagem, sendo os naufrágios um excelente testemunho da geografia da comercialização deste contentor.

O quadro traçado não ficaria completo sem uma referência ao papel desempenhado pela rede viária, que permaneceu em utilização enquanto eixo de circulação fundamental, sobretudo no abastecimento à capital da província, Emerita Augusta.

Content

A proximidade dos centros produtores relativamente aos locais onde se produziram preparados de peixe constitui um forte argumento a favor de um conteúdo piscícola, hipótese que é reforçada pelo achado de escamas de peixes associadas a uma ânfora desta forma no naufrágio Cabrera III (BOST et alii, 1992; ÉTIENNE, 1990: 16-17). O pezgamento de alguns exemplares desta ânfora constitui outra característica a favor deste conteúdo psicícola.